Carlos Alves
publicado em 29 de Novembro de 2021
1. A incomunicabilidade
Um grupo de pessoas reúne-se num hotel (ou numa nave espacial ou numa carruagem de um alfapendular) e o máximo de relação que, entre si, elas conseguem estabelecer é a incomunicabilidade.
Há muitos motivos para a incomunicabilidade: o egoísmo, o olhar narcísico exclusivista sobre si próprio; a falta de tempo, a pressa que nos tira a atenção sobre o que está à volta; o não ter nada para dizer (esta é mesmo muito válida); o ter para dizer apenas mentiras e ficções (a não verdade não é, não pode ser comunicação); a impossibilidade de amar ou o não deixar-se ser amado. Deve haver mais, vou pensar e depois digo. Pensem também enquanto lêem, ou parem de ler para pensar, em factores de incomunicabilidade, depois mandem-me um email, se quiserem.
A primeira frase deste ensaio parece-me demasiado conclusiva para uma primeira frase do que quer que seja. É um risco ser tão conclusivo no início; pode dar-se que, no fim, haja conclusões mais pertinentes; seja como for, ficamos para já com esta que até me dá jeito para falar de incomunicabilidade no Teatro.
De novo, um exagero. Contentar-me-ei, na verdade, em falar de incomunicabilidade na nova criação do colectivo SillySeason.
Façamos isto como mandam as regras. O colectivo SillySeason, composto por Cátia Tomé, Ivo Saraiva e Silva e Ricardo Teixeira, existe desde 2012, ano em que apresentaram o primeiro espectáculo chamado precisamente SillySeason, e sobre o qual diziam “este não é o nosso fim” e em cuja sinopse escreviam que “SillySeason está antes do sucesso e depois do insucesso”. Depois, muitas coisas aconteceram, espectáculos, performances, uma curta-metragem e, agora, dobrámos os números e estamos em 2021 e com Hotel Paraíso. Estreou no Teatro Municipal Baltazar Dias, no Funchal. No elenco juntam-se Ana Moreira, Paula Erra, Rafael Carvalho e Vítor Silva Costa.
As personagens de Hotel Paraíso não se deixam comunicar entre si. É desta incomunicabilidade que falamos. Não parece haver nada que as ligue
- “mas vocês já se conhecem?”, pergunta-se a dada altura,
- “temos umas ficções inacabadas”.
É uma relação ficcional aquela, parca, que ainda existe. São personagens, compõem um grupo à espera de alguém que vem e da madrugada.
Os meandros da contracena reclamam sempre uma comunicação, são assim os formalismos do teatro, mas os SillySeason não são formais e sobre o teatro estão mais em questionamento do que em confirmação.
As personagens servem-se de um discurso existencialista para comunicar, uma articulação textual virada para o exterior, para o público e menos para dentro do palco; um texto imagético e recheado de jogos de palavras e de sentidos, milimetricamente desenhado. É como se cada uma estivesse sobretudo preocupada em fazer-se ouvir, em granjear o seu lugar de fala e em expô-lo e vivê-lo. Sem drama não há conflito, poder-se-á dizer; no entanto, por cima de um drama pouco evidente, a tensão é declarada. Ao mesmo tempo, é assumida uma noção de privilégio por parte daquele grupo que fala. À beira de um fim iminente, admitem comportar-se como burgueses de uma sociedade em colapso.
A espera da madrugada acontece de noite, os hotéis são espaços mais identificados com a noite do que com o dia; o hotel é o sítio para passar da noite para o dia e não o contrário. O Hotel Paraíso é o espaço para passar da noite para uma madrugada que não chega a ser dia. Se a noite não comunica com o dia, a incomunicabilidade é completa.
“Não permito que fales. Não, fala, fala senão ainda vais dizer que eu não te deixo falar” (do texto do espectáculo, citado de memória). Passemos à frente as palavras, o que vemos no primeiro acto do espectáculo são pessoas agarradas a ideias, conceitos e ficções. Uma “ideia de família”, o pensamento colonizado por ficções, andar em “passo ficção”, multiplicação de identidades, uma ilusão de amor. E, sobretudo, uma revolta contra quem estabelece as regras da comunicação. O primeiro acto de Hotel Paraíso são os últimos cartuchos de qualquer possibilidade de entendimento.
2. Os últimos confetis
5 de Agosto de 2021, os SillySeason celebram mais um aniversário da existência do colectivo com uma publicação nas redes sociais em que escrevem: “não somos o pós-pós-pós, não somos o fim, não somos a morte do teatro/ da arte/ do deus/ da Europa/ do pai/ da mãe/ do humano/ do real/ do planeta/ da outra/ do outre... e também não aceitamos um rótulo na testa!”. Parece-me importante ler esse pequeno texto à luz de Hotel Paraíso, ou antes Hotel Paraíso em confronto com aquele pequeno texto.
O espectáculo encaminha-nos para um fim aonde ainda não quer chegar. Mostra-nos o fim, pela incomunicabilidade, mas não o atinge, fica-se pela ameaça (dura, cruel, iminente mas uma ameaça). Ele dirige-se para um pós, para um fim, para uma morte do teatro mas nunca lhes toca. Ainda é cedo, nunca será tarde.
Será apressado para qualquer pessoa dizer que Hotel Paraíso é um espectáculo sobre as alterações climáticas
é apressado dizer de qualquer espectáculo que ele é sobre qualquer coisa
a revolta do clima não é maior do que uma colecção de outras revoltas com que temos vindo a ser colonizados (para usar uma expressão do próprio espectáculo). A luta não é aqui entre nós e o planeta, é antes entre nós e nós e entre nós e o que julgamos ser. Pelo meio, o planeta vai sendo bombardeado com isso tudo, E, sim, também é uma luta com o teatro.
Hotel Paraíso não é um pós mas atira-se para lá. Prepara uma distopia pós-mundo e pós-ficção. A “cidade myspace” em que as personagens se revêem é uma imagem feliz do que o espectáculo quer ser. Habitantes de um sítio que, na verdade, já abandonaram, baldes a amparar a água das infiltrações, alguns confetis mas... os últimos confetis, a ficção está a acabar, a verdade poderá ser dura mas tenderá a assumir a posição de todos os enredos, de todos os amores, de todo o teatro.
3. O drama da pós-ficção
Há, nos trabalhos recentes dos SillySeason (não quero arriscar dizer nos mais antigos também), uma intertextualidade que os atravessa. Trata-se, porventura, do resultado de uma procura constante, de uma pesquisa que não termina e, por isso, exige que se faça um novo espectáculo. Parece ser a pesquisa que demanda por espectáculos e não os espectáculos que requerem a pesquisa.
Em Fora de Campo (estreou no Teatro Taborda, Lisboa, em Setembro de 2020), a relação entre o real e a ficção, entre a verdade e a construção apareciam bem evidentes. A linguagem televisiva, superiormente bem conseguida no espectáculo, colocava o teatro numa demanda por si próprio. Depois, em Folle Époque (estreou no Teatro Carlos Alberto, Porto, em Outubro de 2020), os anos 20 de dois séculos diferentes cruzavam-se numa mistura secular de loucura e excessos tão próximos do real, tão perto da ficção. Se o néon, em Folle Époque, anunciava o “Crash”, em Hotel Paraíso proclama a “Noite”. Os espectáculos são, assim, atravessados por uma euforia decadente, que porventura se tem acentuado nestas criações mais recentes. Uma estética folle para os novos anos 20. Não é, no entanto, certo que Hotel Paraíso aguente esta folia. A noite é agora efectivamente nocturna; não é a noite dos brilhos, das luzes e da festa; é o tempo lento da monotonia, da decadência, do cansaço e do vazio.
O colectivo volta a recorrer ao vídeo, desta vez, em três dispositivos distintos. O primeiro, executado ao vivo e beneficiando da presença cinematográfica de Ana Moreira. A relação que a actriz desenvolve com a câmara, no palco, é inteiramente testemunhada pelo público. Os sorrisos, as lágrimas, os olhares captados em close up são potenciados na projecção, numa entrega do processo e do resultado em tempo real. Ao contrário do que acontecia em Fora de Campo, aqui não são servidas imagens editadas, são imagens em tempo real, um devir cinema sem montagem, um devir cinema que não é cinema. Mas nem por isso livre de ficção. A construção da verdade acontece em tempo real, sem montagens, ainda assim uma construção. Uma ficção que, ainda assim, vai acabar naquela noite, promete-se.
O segundo momento de projecção de imagens trata-se de uma colagem, uma sequência de vídeos que mostram acontecimentos recentes divulgados nos media; a realidade a entrar pelo espectáculo adentro. Será? Vemos o World Trade Center a cair, vemos George Floyd ser sufocado pelo joelho de um polícia, vemos outros polícias atacarem manifestantes, vemos Greta Thunberg, vemos animais em contexto de exploração, plástico (muito plástico) e muitas outras imagens que também nos entram em casa pelos nossos televisores e smartphones. Há desde logo uma diferença de contexto entre essas imagens chegarem-nos pela televisão e as mesmas aparecerem num dado momento de um espectáculo. Em casa, elas vêm embrulhadas em publicidade. Podem aparecer depois de um anúncio a carne de porco vendida num hipermercado e embalada em caixa de plástico ou de mais um telemóvel de última geração fabricado na China em condições laborais que julgamos inqualificáveis (mas não tão inqualificáveis que nos impeçam de pensar na possibilidade de vir a comprar aquele telemóvel com uma câmara tão boa); assistir à morte de George Floyd pode ter-nos deixado indispostos mas passados alguns minutos já está a dar o concurso da noite e já estamos concentrados em acertar nas respostas. As imagens, na televisão, estão embrulhadas em muitos artifícios de comunicação que nos atiram de um ponto para o outro. Quando pegamos nelas, as isolamos e as juntamos depois num contexto só – e esse contexto é a catástrofe -, então apenas temos possibilidade de pensar na catástrofe. É esse o efeito da colagem. A sobreposição de “imagens intoleráveis” (expressão roubada a Jacques Rancière em O Espectador Emancipado) isola-nos de outros contextos e força-nos a ficar com elas.
Que faz com que uma imagem se torne intolerável?
À primeira vista a questão parece perguntar apenas quais são os traços característicos que nos tornam incapazes de olhar para uma imagem sem experimentar dor ou indignação. Mas há uma segunda questão que surge imediatamente inserida na primeira: será tolerável fazer tais imagens e propô-las à visão dos outros?1
A realidade a entrar pelo espectáculo adentro vem anunciar um fim da ficção. Sendo imagens de destruição e de catástrofe (material, humana, moral...), ela vem mesmo anunciar um fim.
Estão a gostar das nossas ficções aqui dentro? Tomem então a realidade lá de fora.
O problema das colagens é que o dispositivo passa a ser a realidade de si próprio. Não é a realidade a entrar, é uma nova construção da realidade a impor-se, sem mais contexto que não o de si própria. No limite, poderia admitir que o processo de colagem é também ele a construção de uma ficção. As imagens que documentam ataques terroristas, crimes ambientais, crimes raciais e homofóbicos são reais, a sua conjugação num “filme” único estabelece uma ficção da realidade.
Além disso, a nossa época de pós-verdade caracteriza-se pela subjugação dos factos às opiniões. Isso acontece, nos fóruns da internet e com muitas individualidades com acesso aos meios de comunicação social tradicionais que os usam para difundir mensagens que contrariam factos mas vão muito bem como opinião, de fácil aceitação por uma multidão sedenta de verdades alternativas. As fake news em torno da covid-19 espalharam-se quase tão rapidamente como o próprio vírus; os ataques de 11 de Setembro em Nova Iorque sempre tiveram as narrativas alternativas, apostando num ataque auto-infligido pelos próprios EUA, rejeitando a hipótese de terrorismo externo (uns porque preferirão ser vítimas dos seus do que de um estrangeiro, outros porque preferirão qualquer coisa à verdade crua dos factos); a crise climática tem os seus negacionistas, Greta Thunberg tem os seus detractores; o racismo parece não ser uma evidência para toda a gente, poucos são os que afirmam explicitamente ser racistas, muitos são os que sentem necessidade de afirmar que isso de que alguns se queixam não existe; o mesmo acontece com a homofobia. A realidade de facto não se compraz com as opiniões e todas as imagens que os SillySeason fazem entrar pelo seu espectáculo são factos; e para todos eles há opiniões de quem não lida bem em aceitar.
Já o terceiro momento de utilização da projecção de vídeo no espectáculo corresponde a uma verdade de facto indesmentível – a existência do planeta Terra (terraplanistas contestarão a sua forma mas, bom, há limites para a opinião e, portanto, aquela imagem da Terra é real e estamos a vê-la de fora). Depois da catástrofe, do desânimo, da violência, da madrugada que se fez lenta e do fim que (ainda) não chegou, conseguimos olhar para a nossa casa e ela parece-nos tão calma e bela e muito ameaçada. Enquanto estiver assim, rodopiante e ameaçada, o fim ainda não chegou.
Os dispositivos de vídeo utilizados são alimentadores de foco. O vídeo pode trazer ao teatro e à encenação o que lhe trouxe, no século XIX, a luz eléctrica. Não tão revolucionário certamente, ainda assim importa pensar sobre a repetida utilização que se faz do elemento vídeo no espectáculo teatral e performático.
As três utilizações da projecção no espectáculo Hotel Paraíso possuem níveis de leitura diferentes e acrescentam significações à própria criação e, sobretudo, ao que se está a desenrolar no palco em simultâneo. O jogo de Ana Moreira com a câmara, a que o espectador assiste como se estivesse nos bastidores de uma filmagem, acentuam a ideia de ficção, muitas vezes repetida ao longo do espectáculo, e, por isso, uma ideia-chave no mesmo. Ideia esta que encontramos também em Fora de Campo e que aqui ganha outros contornos (plásticos e conceptuais). Trata-se aqui de usar o vídeo para fazer algo que o teatro só por si não permite mas o cinema sim: focar o olhar no pormenor. Ao mesmo tempo, a encenação está a dizer-nos que o pormenor é importante para perceber aquela verdade que, afinal, é uma mentira, ou antes, uma ficção.
A distinção entre verdade e mentira/ mentira e ficção/ verdade e ficção atravessa todo o espectáculo e é, em bom rigor, o grande conflito do mesmo
“agora a verdade, o fim da ficção”
“record em passo ficção”
“encontraste a tua ficção”
“a minha ficção acaba esta noite e a tua também”
“colonizaram-nos o pensamento para nos iludir com essas ficções”
“isto é entretenimento”
“tu não és uma pessoa, és uma ideia de pessoa”
“nós não somos uma família, somos uma ideia de família”
“as tuas personagens fazem o trabalhinho todo por ti”
(do texto do espectáculo)
“sem conflito não há drama” mas conflito há e, mesmo que não haja drama, há muita ficção para dramatizar. Hotel Paraíso, no entanto, não é um espectáculo pós-dramático mas quer ser um espectáculo pós-ficção e que se debate com ela o tempo todo.
O vídeo ao serviço da ficção, o vídeo ao serviço da realidade e o vídeo ao serviço do indescritível. São estas as funções que o recurso à imagem projectada tem na nova criação dos SillySeason. Não permitem mais do que a presença da iluminação eléctrica mas dotam o espectáculo de simbolismos e de linguagem meta e parateatral. A generalização do vídeo no teatro terá de ir sempre para além do artifício e mero efeito decorativo e resolver a sua necessidade à luz das linguagens cénicas que se querem aplicar. Esta resolução em Fora de Campo era claríssima (o espectáculo dependia do vídeo), em Folle Époque o vídeo fornecia ao espectador uma perspectiva cénica diferente da que é possível ter a partir da cadeira de uma plateia e em Hotel Paraíso o vídeo engloba uma visão, aponta ao público o ângulo certo. Não há maior ficção do que a realidade enquadrada. E, no entanto, as imagens são todas tão reais; e, no entanto, ela move-se. Antes do fim.
1RANCIÈRE, Jacques, O Espectador Emancipado, Lisboa, Orfeu Negro, 2010, p. 125
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