Carlos Alves
12.09.2022
A propósito do espectáculo A Última Dança, apresentado no Teatro Experimental de Cascais, no dia 10 de Setembro de 2022.
Texto de João Pires
Com Diana Sousa Lara, João Raposo Nunes, João Pires e Sandra Sousa
Vídeo: Inês Paour
Produção: Beatriz Lourenço e Play Company
João Pires é um jovem criador. A idade pode ser um posto em matéria de criação teatral - por isso a juventude também - e esta é, creio, um elemento a ter em conta nas criações recentes do João Pires e da sua Play Company.
A Última Dança, espectáculo apresentado no Teatro Experimental de Cascais, nos dias 9 e 10 de Setembro, no âmbito da 7ª edição da Mostra_T – Mostra de Teatro Jovem - que tem permitido ao TEC dar posto a essa juventude com que abro este texto -, coloca em cena as dúvidas e hesitações, mas também as certezas duvidosas, de jovens criadores confrontados com a sua necessidade de expressão. João Pires retoma aqui muitas das inquietações que estavam já presentes em Narked, a criação que estreara há um ano.
Falando da possibilidade de um (re)encontro artístico com a actriz Diana Sousa Lara, o espectáculo percorre as vicissitudes dessa tentativa, parecendo esvaziá-la a cada minuto que passa. E, no entanto, ela está a acontecer. Num diálogo permanente com a Nina e o Tréplev da peça de Tchékhov, a ansiedade do artista jovem alimenta todo o espectáculo. E é essa ansiedade que se instala furiosamente durante quase hora e meia, sendo clara a vontade de que ela também se espalhe para o meio do público. Os espectadores têm algumas razões para se sentirem desconfortáveis ao longo do espectáculo e esse mecanismo para o desconforto é, muitas vezes, sublime. Outras vezes não, mas é quando acontece de forma menos ostensiva que funciona melhor.
A narrativa deste desencontro é reconstituída pelo actor João Raposo Nunes, interpretando um João Pires/ Tréplev a braços com a tarefa de desempenhar o papel de um colega que o está permanentemente a observar (e a contestar), e pela actriz Sandra Sousa, que exibe uma disponibilidade altruísta, tensa e sorridente para corresponder aos anseios de quem a dirige. A dupla João Raposo Nunes e Sandra Sousa está nas mãos da outra dupla do espectáculo e esse jogo é alimentado até à quase revolta. A relação ou as relações de poder dentro de uma criação estão sempre presentes e, mais uma vez, encontramos comunicação com Narked, que referi atrás.
Tratando-se de um encontro ou desencontro entre dois criadores, as regras são fixadas no palco como na ficha técnica. A autoria é de João Pires para a actriz Diana Sousa Lara. As reflexões sobre o actor-criador parecem assistir a esta relação. No início do texto mencionava a juventude porque é neste ponto que ela me parece relevante para o espectáculo. Ele apresenta, de forma muito evidente, a pesquisa de um autor sobre si próprio e as suas relações de trabalho. Não o retrato do artista enquanto jovem, parafraseando o título da obra de James Joyce, mas o retrato do jovem artista enquanto artista jovem. A criação de João Pires e do restante elenco está ensimesmada nesta procura, e a forma que parece encontrar para responder é testar os limites da verdade em confronto com os limites da ilusão. Há uma arrogância e uma soberba muito fortes na presença do actor (e autor) em cena, e na sua relação com os e as colegas. Essa sobranceria é uma marca forte daquela verdade ali exposta e essa sobranceria pode ser uma ilusão. Ela faz-nos rir, porque a soberba pode ser ridícula; ela faz-nos sentir mal, porque a arrogância pode ser real. É neste equilíbrio que se joga A Última Dança.
No limite, tudo o que está a acontecer em cena é sobre eles. Desde logo, sobre eles os quatro; depois, afunilando, um actor e uma actriz tentam viver e estar ao serviço daquilo que é sobre o outro actor e a outra actriz. O espectáculo vai entrando numa curva elíptica e egocêntrica. Os figurinos ajudam a confirmar uma distinção entre as duas partes do elenco: o registo formal de quem “manda” e o informal de quem trabalha e transpira disponibilidade. O espaço cénico é sóbrio e quase vazio, como vazio é qualquer espaço onde ainda nada se criou. O dispositivo de vídeo foca o espectador na história que se quer narrar, estabelecendo dois planos de uma mesma acção, ambas reais, ambas ilusórias.
A exposição crua de um processo de criação, fazendo disso situação de conflito, colocando os/as intérpretes à procura de si próprios, numa recriação autobiográfica/ autoficcionada, é demonstrativa das preocupações dos criadores com a sua verdade. Trata-se de acreditar que os seus dramas, na primeira pessoa, são tão eficazes e necessários quanto os de qualquer outra personagem que decidam compor; e, na inquietude de quem está a demonstrar os seus anseios, carregar o público com a inquietação a que o ser-se espectador não pode desobrigar.
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